terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A.CURA na rádio Transcontinental hoje!



Hoje a A.CURA estará na rádio Transcontinental FM (104,7) por volta das 17h contando um pouco sobre quem somos e que projetos desenvolvemos! A entrevista será transmitida no programa Bagunça Geral que é transmitido em UHF de segunda a sexta-feira, das 16h às 17h, no canal 15.


Abraços,
Lygia Canelas 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Marilu, olhos e flores

-            Acorda, Malu! Acorda! – disse Sara, sacudindo, apressada e bruscamente, o seu ombro.
- Está chegando outro paciente.

Marilu abriu os olhos, assustada – começava a sonhar. As pálpebras pesavam como se estivessem suspensas por chumbos. Sentia-se perdida, confusa, mas, de súbito, a consciência se recobrou, treinada pela rotina do ofício de enfermeira.

Olhou, automaticamente, o relógio de pulso: vinte e uma horas e vinte e sete minutos. “Não dormi nem trinta minutos, esses plantões ainda vão me matar” – reclamou para si mesma em pensamento, enquanto fazia homérico esforço para se levantar. “Ainda falta mais de uma hora para o fim do martírio” – lamentou, no momento em que suas autoqueixas foram interrompidas pela voz insistente da companheira:

-            Apressa-se! O sujeito tomou dois tiros... vamos pra sala de cirurgia. Vai!

-        Estou indo. Estou indo – respondeu sem vontade, fazendo uma careta de nojo por  causa do café frio e passado que engolia, porém este, apesar do mau gosto, tinha certo efeito animador.



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Vinte e duas horas e quarenta minutos. Marilu descia o elevador do Hospital Carmino Caricchio do bairro Tatuapé. Tinha acabado de passar o plantão para a sua substituta. “Doze horas: só louco trabalha doze horas seguidas” – censurava-se ao acender um cigarro e cumprimentar o segurança. Como era de praxe, andava aqueles três quarteirões até a estação Carrão do metrô, cheia de piedade e crítica para consigo mesma: era seu meio de não pensar no cansaço do corpo, seu automatismo fisiológico inconsciente. “Ataxia, gastrostomia, nevralgia, mielografia, hiponatremia... ah... não agüento mais tantos ias... um dia mando tudo pro espaço... é... esse paciente não tinha jeito, dois balaços no peito, pulmão direito perfurado, traumatismo na quarta vértebra torácica, vários outros órgãos danificados seriamente, e ainda era hemofílico o azarado... foi melhor que se fosse de uma vez: era caso de coma dépassé, viraria um vegetal. Teve sorte o pobre diabo”.

E assim dava passo após passo, sem se dar conta do estado deprimente em que se encontrava. Só voltava a si já no vagão do trem, quando via seu reflexo no vidro: as enormes olheiras, o rosto como que se tivesse acabado de sair de um campo de batalha, a fisionomia triste e agastada.



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Vinte e duas horas e cinqüenta e oito minutos.

-            Tim! Tom! Estação Tatuapé – anunciava a voz do operador do trem, voz que sempre a

acordava.

“Por que essa maldita voz?! Como odeio essa estação. Lá vêm todos aqueles adolescentes com sorrisos nos lábios e bradando, em vez de conversarem. São uns tolos mal educados” – pensou zangada.

Marilu não suportava a alegria banal dos jovens: sempre a tornava nostálgica. Ela um dia fora assim. Jovem, bela, feliz. Mediocremente tola e feliz. Achava que tinha sido enganada. E, para piorar, acreditara nas mentiras. Todos os familiares, amigos, conhecidos, tinham lhe dito:

-            Como você é linda Marilu...

-            Vai se dar bem na vida...

-            Vai se casar com um ricaço...

-            Vai ser modelo...

-            Vai virar atriz de novela...

 Marilu não compreendia porquê não era feliz. Está certo que ela não buscou na sua vida nenhuma dessas profissões glamourosas, nenhum marido rico. “Mas essas coisas não se buscam” – era como se confortava.

Quando via essas belas raparigas, lembrava-se da sua própria beleza de outrora. Como fora bela aquela Marilu. Não que ainda não tivesse beleza, mas como fora bela. Tinha olhos negros como o céu de noites sem lua e estrelas. O rosto bem feito e delicado. O nariz era uma hipótese de porcelana no seu rosto largo, de tão pequenino. A boca carnuda, sensual, fugidia. Belos cabelos negros e lisos como os de Iracema de Alencar. Corpo magro e bem torneado. Falanges um pouco compridas em braços que poderiam ser confundidos com o pescoço dos cisnes.  Ah... seus olhos arredondados e ligeiramente puxados... assemelhava-se a rainha do Egito Antigo. “Eu era mais bela que todas essas menininhas. Não existia um só rapaz que não me desejasse. Por que não fui feliz?” – indagava-se.

Logo que seu inconveniente reflexo aparecia no vidro, como uma imagem não autorizada, porém necessária, Marilu encontrava um motivo: “Estou péssima. Cadê aquele brilho que carregava nos olhos... só me resta olhos sem paixão” – sentenciava-se, fechando-se na própria tristeza, diria uma flor que pressente a chegada do inverno. Esquecia-se do rosto que já não era tão bem marcado. Do atual cabelo curto e prático, como a sua vida. Dos lábios descorados. Do nariz, que num rosto mais maduro e cheio, parecia se negar a existir. Como todo o resto custava a acontecer. E do corpo, que como a alma, estava fatigado, com uma dose a mais de tecido adiposo, e já não mais exalava a doçura das aves em vôo.



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Vinte e três horas e dezesseis minutos. Marilu desperta na parada da Estação Bresser. Pegara no sono. Seus olhos permanecem turvos por alguns instantes. Quando vê a placa com o nome da estação, lamenta: “Ainda aqui... até chegar no Paraíso... que droga: tenho que fazer baldeação”.

No momento em que vira a cabeça para conferir as horas no relógio de pulso, vê um jovem sentado no banco em frente. Ele lê um livro. Parece calmo e distante. Cabelos compridos e desenvoltos, belo rosto, corpo bem feito e que incomparável par de olhos possui aquele jovem. Marilu sente-se hipnotizada: “Que belo rapaz. Que olhos brilhantes: parecem faróis numa praia noturna e deserta. Como é bonito... e tão jovem”. Nesse exato instante algo guardado no mais fundo de si renasce. Algo que ela escondera tão disfarçadamente que jamais encontrara. Sentiu como que um vulcão dentro do peito. Um vulcão há muito adormecido, que agora começava a quebrar a crosta que sua própria lava formou. É quase impossível descrever o que ela sentia. Era algo como uma tempestade, um grito agudo e dolorido, dois tiros no peito, uma vida renascendo enquanto outra acabava de se esvair, uma sutil rosa que começava a se abrir com o suave sopro da primavera. “Estou apaixonada...” – suspira Marilu para o próprio coração, que parecia exigir uma resposta do porquê voltava a funcionar, depois de anos de inércia. “Está lendo Pessoa. Gostava tanto de Pessoa. Como eram aqueles versos? Deixe-me lembrar:

‘Não quero rosas, desde que haja rosas.

Quero-as só quando não as possa haver.

Que hei de fazer das coisas

Que qualquer mão pode colher?’

O rapaz é um romântico: sempre esperei um belo poeta.”

Subitamente Marilu parecia mais desperta do que nunca. Tão desperta que se viu a olhar para o rapaz, viu seu vulto de mulher apaixonada. Sua espera, todas as suas recusas pareceram se justificar. Sentiu as pernas moles (de cansaço ou de susto?), o coração pulsava-lhe a mil. Também viu que o rapaz a olhou de soslaio e esboçou um leve e malicioso sorriso. Desviou o olhar que não durou mais que alguns segundos. Olhou para o lado, viu que uma senhora a observava e corou violentamente. E violentamente sentiu-se envergonhada, invadida e profanada. “Que velha enxerida, vai cuidar da sua vida... mas... mas... talvez ela tenha razão. Como pode uma mulher de quase quarenta anos se apaixonar por um rapazola que não parece ter mais de vinte e cinco?” – refletiu num misto de ódio, rancor e agradecimento.

Marilu deu mais uma olhadela para o rapaz, que retribuiu o olhar. Aqueles dois faróis romperam a negra névoa que cobriam os seus olhos, adentraram em sua retina. Eram demasiado poderosos e ofuscantes. Ela lembrou-se do seu rosto cansado, da sua perdida beleza. Ela se cegou. Abaixou de supetão as pálpebras. Ainda pode ver os últimos raios daqueles dois sóis: o crepúsculo inigualável nos mares. Engoliu um soluço seco e pegadiço. Pensou: “Não, ele zomba de mim, deve ser um sádico”.E fechou-se novamente.



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Vinte e três horas e vinte e oito minutos. O trem diminui a velocidade. Marilu continua com os olhos cerrados: tem medo de abri-los e não mais encontrar o rapaz. Fingia dormir, mas todo o sono passara. Passara ela num turbilhão de pensamentos nos últimos minutos: furacões de lembranças, maremotos de anseios, suturas de tecidos rasgados à faca, olhos de pacientes, olhos de crianças, idosos, mendigos, olhos de mortos e de sangue, olhos e mais olhos, tépidas angústias, oprobriosos desejos, flores se abrindo, pétalas fechando-se, inverno, primavera, oceanos, geadas, cubarins, taquicardia, AVC, ataques crônicos de pânicos, poetas e mais poetas, versos e mais versos, recordações de infância, mãe que se foi, pai moribundo, irmãos que não teve, e olhos, olhos de cão, de médicos, de menina chorando sobre o cadáver da mãe, olhos negros e perdidos nas rodas da alma, olhos dos filhos que poderia ter tido, olhos mortos, olhos vivos, soromas, flores, versos, azaléias azuis como o mar, orquídeas roxas como a cianose, liberdade, olhos da liberdade, escolhas, rosas escarlates, hemoglobina, curativos, fome de amor, olhos de amor, olhos da noite, solidão, olhos mortos, flores, olhos mortos das flores.

O trem está cada vez mais lento. Ela sabe que aquela odiosa e aborrecedora voz surgirá depois do apito. Deseja no mais íntimo do seu ser que a voz diga: “Por problemas técnicos, o trem ficará com as portas fechadas e parado por toda a eternida...” Mas, antes de concluir o desejo ouve o apito, estremece. A voz diz:

-            Estação Sé. Desembarquem pelo lado esquerdo do trem.

Marilu sente as mãos em estado de hipotermia, o pulso sofre nítida braquicardia, a respiração parece entrar em apnéia e o coração, por vontade própria, pára. Aflita, abre os olhos. Lá está o poeta. Fecha graciosa e lentamente seu livro, suspira. Seus olhos perdem-se em devaneios. Parecem repletos de amor. Ela pensa que tem que descer nesta estação. Mas não quer. O rapaz não demonstra que descerá. Marilu tem incontrolável vontade de se levantar, e, inesperadamente, beijá-lo. O trem está quase parado. Ela se levanta. Olha novamente para os olhos do rapaz que estão lá: aquecendo sua inócua vida. O rapaz lhe sorri outra vez. Ela dá um passo. Depois outro. E mais outro. Ele como que a aguarda, sorridente no seu reino de beleza e juventude. Parece se sentir um Alexandre ou Kan ao final de uma batalha vencida. O trem pára. As pernas de Marilu, voluntariamente, desviam-se do trajeto traçado. Ela tenta resistir. Inútil. Um, dois, três, quatro passos. Já está fora do trem. Percebe braços lhe empurrando pelas costas. As pernas dão mais dois passos. Finalmente retoma o controle do corpo. Estanca-se. Ouve o apito. Vira-se imediatamente. Marilu vê a porta se fechando. Quer correr, segurar a porta, entrar no vagão, olhar nos olhos do rapaz, dizer-lhe: “meu amor, finalmente retornar-te”, beijar-lhe loucamente. Mas se recorda do seu tempo de beleza. De juventude. Vem a sua passiva memória o rosto de Júlio.

“Quando eu tinha dezenove anos amava um rapaz tão belo como esse. Os olhos de Júlio eram tão fortes, seguros, tão lindos. Mas eu não fiquei com ele. Deixei que se fosse, e hoje...” – recordava-se, quando foi interrompida pelo estalar da porta fechada, o trem que começa a retomar sua marcha. Teve vontade de correr atrás do trem. Bater na porta. Bater e gritar. Gritar insanamente. Pular nos trilhos. Mas não o fez. Estava como que pregada ao chão: dir-se-ia que a gravidade a sucumbia. Um peso insuportável de tão leve nos ombros. Não correu, não gritou, não pulou. Somente acompanhou o trem com os olhos e pensou amargamente: “Jamais o encontrarei novamente”.



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Quatro horas e trinta e nove minutos. Marilu abre os olhos drasticamente. Vacilante, perdida: estivera sonhando. Sua garganta está seca. Tem sede. “Onde estou?”. Olha para o teto escuro, imperceptível. Não compreende. Passa a mão na face para desanuviar os olhos. Tateia o rosto úmido. Lembra-se que chorou e enorme repulsa de si mesma a invade. “Estive chorando como uma menina” – acusa-se.

Deitada de costas, estende o membro superior esquerdo, num gesto indeciso e vazio. Não apalpa nada além do lençol desarrumado. Fecha delicadamente as falanges, segurando o lençol em desespero contido. “Nada. Eu só. Eu comigo mesma”. Um buraco lhe domina o peito: vácuo. Distingue dois imensos olhos no teto negro. À sua consciência ressurgem fragmentos do sonho: olhos de Júlio, seus próprios olhos, olhos de mortos, olhos vivos, os olhos do rapaz do trem. Para afastar a visão do sonho, tenta reconstituir a face do rapaz, mas só se recorda dos olhos. Um soluço amargo, indesejado, repugnante, muito viscoso, perturba-lhe a faringe.  Uma lágrima escorre do seu sombrio olho. Lágrima de dor. De fugitiva. De estrangeiro desconsolado em terras distantes. O corpo clama por água. Seu corpo se ergue. Senta-se na cama e algo como uma pontada lhe penetra na nuca. Levanta-se. Começa a andar. “Malditas pernas” – pensa. Vai a cozinha. Abre a geladeira. As pálpebras se contraem em reação a luz daquela caixa do pólo. Sua mão que tateara no escuro do quarto e no da cozinha, agora tateia no claro da geladeira. Segura sem forças a garrafa de água. Bebe no gargalo. O frio da água corta-lhe a garganta como se bebesse cacos de vidro. Guarda a garrafa. Caminha até o banheiro sem ter pensado em ir ao banheiro. Abre a porta, acende a luz, distende as pálpebras com virulento esforço. Capta seu rosto triste no reflexo do espelho. No mesmo espelho surge seu uniforme branco de enfermeira, pendurado no espaço. Relembra-se que terá que voltar ao hospital, ao seu sufocante serviço. Apaga a luz. Sem pensar em nada vai até o quarto. Deita seu corpo nu e solitário na cama. Fecha os olhos negros.



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Quatro horas e quarenta e sete minutos. Marilu adormece como uma flor que fecha, impetuosa e estranhamente, suas pétalas, por haver descoberto seu estado vegetal, diria um estado de coma auto-induzido, naquele fim de madrugada sem sonhos, olhos ou esperanças.



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FIM



    

 Hélcio Lopes

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Dezesseis anos

            --- Faz tempo que a gente não fica assim... juntas, né? – disse sentando-se ao lado de Renata.
            --- É... nós precisamos colocar as fofocas em dia! Pena que hoje eu tenho inglês... Você tem alguma novidade? – enganchou-se nos braços de Luíza.
            --- Deixa eu ver...
            Luíza procurava na mente algo pra contar e enquanto a semana retrocedia confusa em seus pensamentos, as duas começaram a balançar as pernas fazendo o colchão pulsar molemente. Estavam sentadas no beliche, no quarto de Luíza, na parte de baixo com as costas apoiadas na parede. Era ali naquele canto o qual sempre ficavam, como numa cabana... (quando eram menores, cobriam o beliche com lençóis e ali brincavam protegidas, misturavam-se com as bonecas e com os sonhos futuros diluídos numa simples brincadeira, toda menina um dia brinca de “casinha”). E ali costumavam passar horas conversando... sobre tudo.  Hoje, esse “tudo” já não cabia nas poucas horas que lhes sobravam.
            Luíza sempre demorava a encontrar alguma coisa pra contar. Não que não houvesse nada pra contar, ou que não quisesse fazê-lo, mas é que a maioria dos fatos eram tão cotidianos, tão sem importância que Luíza não tinha grande interesse em recordar-se e repassá-los aos outros. Ou então, eram fatos angustiosos, ansiedades que a tanto custo mantinha guardadas, esperando que o tempo passasse e que pudesse sentir-se mais segura para confidenciá-las a alguém, talvez. E entre esses meditativos intervalos, Renata sempre iniciava algum assunto.
            --- Sabe quem eu vi?
            --- Quem?
            --- O Paulo!
            --- Onde?
            --- É que foi assim: eu estava andando na rua da casa da minha tia e aí eu o vi. Ele estava com aquela menina esquisita!
            --- Mas ele está ficando com ela?
            --- Bom... Ah, com certeza! Aquele lá não passa uma semana sem estar com alguém.
            --- O Paulo é fogo né? Tá sempre apaixonado, sempre sofrendo... Eu já nem sei mais quantas vezes ele já encontrou e desencontrou as almas gêmeas dele...
            --- Não sei como ele não se toca!
            Ficaram alguns instantes em silêncio. Preocupada em parecer interessada na conversa Luíza comentou:
            --- Um dia, quando ele se apaixonar de verdade, nem vai perceber.
            --- O pior é quando ele vem dizer pra  gente que “dessa vez ele encontrou a menina certa”!
            Vendo que a amiga continuou o assunto, resolveu complementar:
--- Sabe que eu já nem sei quando é que ele está apaixonado, ou quando está sofrendo! As coisas com ele acontecem tão rápido... que eu acho que ele se apaixona e sofre ao mesmo tempo!
            Riram as duas. Renata começou a contar o que estava fazendo em casa antes de se encontrar com Luíza.
“Gozado! Os fatos, por mais comuns que fossem, sempre pareciam ter mais importância ou uma importância diferente quando narrados pela Renata. Acho que é o jeito único e expressivo que ela tem, que faz com que eu não me importe em ouvir. Sou do tipo que gosta de escutar as pessoas, talvez assim eu nunca precise falar muito. Eu pensava muito antes de falar alguma coisa e as pessoas não têm paciência para esperar, interpretam qualquer pausa como o fim de uma fala e se põe desesperadas a falar para preencher qualquer vazio constrangedor. Ela tem uma alegria e um brilho nos olhos ao contar sobre a vida comum... Era uma das coisas que mais admirava na Renata. Deixar de lado um pouco as complexas filosofias, e observar apenas a vida que corre cíclica e viciosamente; a vida que é igual pra toda a gente, a vida comum de pessoas comuns e que são tão especiais por isso. Comigo é o contrário, minha cabeça parece uma máquina que pensa interminavelmente... pensa, pensa, pensa... e às vezes, aliás, muitas vezes, a vida parece não se incorporar aos meus espasmos racionalóides”.
            --- Rê, posso te fazer uma pergunta?
            --- Claro!
            --- Mudando totalmente de assunto... É, não é bem uma pergunta, é que acontece de vez em quando uma coisa esquisita comigo...
            --- O quê? – virou para Luíza 
            --- Eu fico imaginando minha mãe morta.
            --- Ai que horror!
            --- Não, calma! Peraí, deixa eu explicar...
            Luíza mergulhou os olhos num vazio profundo, não parecia enxergar o que estava a sua frente, mas parecia ter os olhos voltados para dentro como se estivesse a assistir imagens dentro da mente hipnotizada...
            --- Sabe...
            Respirou largamente, em seguida pôs-se a falar como se estivesse a descrever um cenário.
            ---...Eu nunca perdi nenhum parente, nenhum amigo... nem mesmo algum conhecido com quem eu tivesse mais amizade... A morte nunca esteve perto de mim... Graças a Deus! E nem quero que esteja, não é isso!
 Renata ouvia atentamente o que Luíza dizia, mas não pôde conter um olhar fugidio até o relógio na escrivaninha... eram 14:32h. Mais um pouco e teria que ir embora, tinha curso de inglês às quatro horas da tarde, tinha ainda que passar na casa de sua avó para trocar de roupa e pegar seus livros.
            --- Não é de hoje que, de repente, assim do nada, eu tenho imagens que entram na minha cabeça sem que eu tenha controle, sabe? Passam assim como se fossem cenas...
            --- Você tem medo que a sua mãe morra, é isso?
            --- Eu tenho muito medo disso, mas não é que eu pense que ela vá morrer, é mais do que isso... Eu sei que ela vai! Entende?
            --- Não... Não estou entendendo porque você está falando disso... Você está com uma expressão, com uma cara que eu nunca vi antes... credo! Você fala de um jeito tão bonito e difícil, devia ser poeta ou psicóloga como a sua mãe. - respirou longamente e concluiu – Bom, eu não sei se estou te entendendo direito Lú, o que eu entendi é que você anda com muito medo de acontecer alguma coisa com a sua mãe, é isso?
            “Era. Era? Não, era bem mais do que isso na verdade, mas como querer que ela entenda, se nem mesmo eu entendo muito e também não sei explicar, e também eu não queria explicar nada, eu nem devia ter dito nada... É por isso que a Renata me irrita às vezes... eu tenho sempre que ter algo de novo pra contar... Acabo contando essas coisas que eram pra ficar apenas dentro de mim... e agora estão lá... Expostas, espalhadas pelo chão... o tempo escasso e eu sem saber como juntar tudo pra colocar novamente na minha mente do mesmo jeito em que estavam antes de falar qualquer coisa. Água, uma vez entornada toma a forma do recipiente em que está. Muito bem, então a forma agora era essa, eu tinha medo de que algo acontecesse com a minha mãe... Era isso também, e talvez, já que eu não entendo muito o que eu mesma estou sentindo seja bom que eu mantenha essa explicação comigo: eu tinha medo de que algo acontecesse com minha mãe. Era isso”.                   
            Lá fora, pelo retângulo da janela do seu quarto, a cor da tarde era amarela, misturada ao verde do enorme jardim da frente, cheio de sombras agitadas, redondas, musgosas, no formato de pequenas folhas e galhos. Diversas flores e silhuetas de plantas de espécies variadas nimbadas de intensa luz solar. Ventava e tudo era calmo, amarelo acaramelado, cor de uma pêra madura. Um bafo morno e um cheiro verde da grama amolecida pelo sol das quinze horas.
--- Ninguém pode saber quando exatamente uma pessoa vai morrer, mas todos nós sabemos que vamos morrer um dia.
--- Haaa, mas até ai isso é normal né? Todo mundo morre... um dia...
--- Mas por quê?
--- Ué Luíza, porque sim, oras... É assim que acontece com todo mundo... as plantas, as células, sei lá mais o quê... Não fica pensando nisso não, sua mãe tá bem não tá? Então...
            Queria perguntar à Renata como havia sido quando soube que sua avó havia falecido, mas seria chato trazer esse assunto pra ser esmiuçado, era recente e Renata adorava aquela avó.
            E agora começa a idade onde se passa a ter segredos só nossos, onde realmente se tem coisas que não se quer contar...

            Dezesseis anos. Indivíduo.
A mente se desenvolve, se desabrocha,
se desemaranha, se desenreda... Adolescência.
            ...

--- Lú? Lú?
--- É, acho que é isso sim Renata. Mas deixa pra lá, medo bobo, essas coisas depois passam.
            --- É, não fica pensando nisso, coisa triste na cabeça a gente deixa passar que nem vento gelado... Nossa! - ri – Da onde eu tirei essa frase? - riem as duas.
            Luíza sentiu-se arrogante, Renata queria ajudar, queria entender, mas se nem mesmo ela própria entendia ou podia explicar, como podia se irritar com os outros por não compreenderem-na?
--- Você quer comer antes de ir pra lá?
--- Não Lú, não precisa, quando eu chegar eu como na minha vó. - levantou-se e foi até o sofá pegar sua bolsa – Passa lá depois!
--- Eu tenho que esperar minha mãe chegar, senão ela fica brava de não me ver em casa nunca! - risos.
--- Tá bom, aí você me liga se você não for. - disse ajeitando a mochila nas costas.
--- Tá. É, deixa eu abrir a porta pra você, pra você voltar sempre. - sorri.
--- Então, qualquer coisa até daqui a pouco tá? Tchau!
--- Tchau Rê, até.
            Ficou esperando Renata sair pelo portão e só aí percebeu que nem foi até lá abrir para ela. Puxa, que falta de educação! Sou muito distraída mesmo...
            Começou a ventar mais forte, agora a sombra começava a ficar verde com menos da luz morna do sol... é agora que começa a ficar perigoso, sem o amarelo, começa a escurecer rápido. Sua mãe sempre dizia que à noite as coisas sempre parecem piores. Tão bom sentir o vento. Encostou a cabeça na porta semi-aberta e fechou os olhos. Seu cachorro veio lhe lamber os dedos dos pés, pulou na porta, sem conseguir atenção desistiu e voltou para o portão. Uma trança castanha clara desmanchando-se sobre o ombro direito de uma mocinha sonhadora e incontida. Existem rosas negras? Imaginou e desejou como uma criança um lindo buquê com muitas rosas aveludadas e  negras, com nuances azuladas conforme absorvessem a luz. Queria naquele momento um buquê cheio de rosas negras.
            Não se importou que alguém pudesse passar pelo portão e de repente ver uma garota de olhos fechados encostada à porta da sala e que parecia sonhar. O vento, o aroma, a prostração do corpo cansado, tudo era hipnotizador e confortável. Ali, envolvida daquela forma, percebeu que seus pensamentos começavam a surgir e a se desenvolverem, medrarem[i], como ramos e raízes que, sob feitiço, crescem e se espalham rapidamente.
 Transida de assombro, percebeu a sua volta o silêncio humano, percebeu o movimento das coisas, os sons, e tentou sentir-se anulada de tudo aquilo, tentou perceber se essa anulação a faria sentir como se estivesse morta... Apenas um corpo que está, está no meio de toda a movimentação do que ainda é vivo; mas já não escuta, já não percebe, apenas está. Imóvel, como uma pedra deve ser. Aquilo que é duro, que é sólido e que não pulsa, que não tem vontade, no entanto, mesmo assim não espasma; que aduba e se torna parte da terra que ainda vive. O olho que não pisca, a saliva que resseca. A morte de um corpo humano.
            “Mas então o que é que percebe? Quem é que está percebendo algo nesse momento da morte? Minha alma dentro do corpo morto? A alma fora do corpo sem vida? Ou nesse momento sou terra, grama, ar, luz, e percebo o pleno, o todo,  porque me torno parte dele? O solo se empresta a mim como uma incorporação de vida para que eu observe meu próprio encerramento humano? Tornarei-me solo. Ele me absorverá.
            Sem haver Deus, ou céu, sem figuras divinas, sem planos espirituais, sem a luz branca, pura e forte como um túnel, sem imagens... apenas a matéria, a morte da matéria, a morte da alma que tento agora descobrir se também é matéria... o alívio de sair daqui; de deixar o corpo físico que tanto dói e pesa e ser apenas uma aragem morna sem muita personalidade, sem lembranças, sem vontades; seria o suficiente...
            Eu simplesmente deixo de ser? De ser o que gosto, o que prefiro, minhas escolhas, meu jeito de sorrir, de interpretar as coisas; deixo de ser o que estudei, o que li a vida toda e que gostei; tudo o que sonhei? Deixo de ser o que agora não vou mais realizar mas que sempre esperei? Simplesmente deixo de ser o que demorei aquele tempo todo para descobrir que eu era?
            Os meus suicídios são mentais e não físicos; eu já tentei me matar algumas vezes mas fui socorrida a tempo por outros pensamentos, assim como quando se socorre rapidamente alguém que cortou os pulsos e se consegue salvá-la. Matar-me de verdade seria de alguma forma permitir/assumir a insanidade em mim”.
            Imaginou-se então em uma janela no alto de um prédio.
            Tentou pensar como um suicida: “Como alguém poderia ter a coragem de pular?” Há muitos que a possuem...
            Lembrou-se de uma palavra inventada por ela mesma depois de ler um romance de Machado de Assis.

...PRECIPIAR: v.i.1.Começar a se deixar envolver, consentir uma vertigem próximo a um
precipício ou penhasco ou qualquer lugar de grande altura em que a queda
seria fatal; grande perigo.2. Consentir; deixar
se envolver com algo
bastante perigoso
ou fatal.
 Espécie de “volúpia do
aborrecimento” -
definição de Machado de
Assis em Memórias
Póstumas de Brás Cubas.

            Então estava no alto do prédio. É incrível como a consciência pode interferir na mente, mesmo entre as balbúrdias das confusões mentais: “E se eu caísse? E se eu realmente caísse?”

            Poderia estragar tudo por causa de alguns minutos de insanidade e antecedentes meses de angústia. Será que aquele que está prestes a se jogar da janela de um edifício está sempre decidido ao suicídio? Será que ele não quer ou precisa somente sentir o perigo?

            Não parecia estar ali de verdade, era como se estivesse sentada um pouco mais atrás apenas assistindo a toda essa loucura, como a fantasia de enfrentar um perigo e embriagar-se de adrenalina. Sabia que não ía cair...”

            Porém, escorregou... caiu... esmagou-se no duro ladrilho da calçada; pôde sentir o impacto e o quebrar do crânio, os olhos afundavam-se opacos e sem vida, a olharem sem qualquer intenção para o topo dos prédios que pareciam curvados para baixo para ver-lhe o corpo estirado. Sentiu um grosso líquido, viscoso, vermelho e morno, escorrer-lhe entre o couro cabeludo e teve a impressão de que o sangue vasava por de trás dos olhos esbranquiçados. Seu sangue era grosso e maltoso...

            Não, eu não caí de verdade. Não, eu não morri de verdade”.

--- Filha?!

--- Hã?! - o piso gelado acorda seu corpo.

            Abre os olhos, percebe assustada que está no chão, está com a cara entre o piso da garagem e a grama do jardim. A partir desse instante a dor nos supercílios se manifesta.

--- Que aconteceu, você caiu? Levanta meu anjo, vem! Ai meu Deus, deixa eu olhar! Você se cortou, olha aqui! Mas como é que isso foi acontecer menina?

            Luíza levanta mecanicamente. Esteve realmente estirada no chão, em frente à porta. Leva os dedos para a sobrancelha direita e sente que está saindo sangue...
 
Lygia Canelas







[i] Medrar: crescer, desenvolver-se (vegetais); ficar maior, progredir; ganhar corpo, desenvolver-se; sentir medo, apavorar-se.

Vermelho-fita dos lábios teus

Marco Maida


            Décimo dia do mês. Recebo o salário devido pelo meu esforço: uma troca, um contrato. Trato feito; trato com esse mundo. Finco os pés, reconheço-me força-trabalho, domado:qualquer coisa de selvagem em mim dorme. Melhor assim!
            Décimo dia do mês. Com o soldo na mão saldo minhas dívidas. Fico sem saldo: vermelho. Meu sangue esvai-se em intermináveis horas de trabalho, salário, e enfim, com o sumo de mim, consumo o que me consome – serviços!
            O que é necessário nem sempre é suficiente. Enquanto ando penso: o que é suficiente? Talvez um místico sufi que sabe bem das coisas. Adoro a tradição sufi no islamismo. Conheci um místico sufi em 2002: Mohamed AL Kabul, cego, casado, um visionário. Ele era suficiente, porque sabia que precisava de pouco para viver.
O necessário não é suficiente, murmuro. Tenho desejos. Não consigo deixar de ser corpo e de permitir ao corpo a vontade. A vontade tem a ver com um movimento interno e é o corpo que impulsiona o complexo de elementos que constitui o ser humano a agir. O desejo é motivação externa, promove a vontade. A vontade é natural, até os animais são movidos pela vontade, mas tenho duvidas se lhes acontece o mesmo no âmbito do desejo. Esse está ligado a cultura, aos fluxos humanos que significam o mundo.
Décimo dia do mês. A cidade parece mais tranqüila do que costuma ser. Arrisco entrar em uma loja para olhar a vitrine. Pouca gente transitava pelos corredores. Os vendedores ficavam pelos cantos falando amenidades. Adoro essa palavra: amenidades. Dá vontade de pronunciá-la com a boca cheia de pétala de flores. Sempre que ouço alguém pronunciando essa palavra posso jurar ver pétalas de flores escorrer-lhe pela boca. Passo os olhos pelos produtos encarcerados atrás da vitrine: vítimas do desejo ou sua objetivação? Não sei...; desço o olhar para verificar o preço de um produto e vejo uma fita vermelha caida no chão que corria para debaixo da vitrine. Decidi puxar a fita para entregá-la para uma das vendedoras, quem sabe ficaria por ali falando amenidades. Puxei a fita, resistiu. Obstinado aumentei a força; sem resultado. Olhei embaixo da vitrine para certificar-me se algo prendia a fita vermelha. Vi o rosto branco de uma Gueixa, ela segurava a fita vermelha em sua boca. Cabelo preto, volumoso e preso em coque; olhar lânguido, sugeria prazer. Seu rosto, branco como porcelana, fenômeno de si. A fita vermelha era uma extensão de seus lábios. Segurei firme a fita e puxei com a intenção de salvar a Gueixa de lá de baixo. Fiquei com medo, pensei por alguns minutos o que tinha acontecido para aquela mulher ficar presa ali embaixo da vitrine. Um acidente, talvez? Tinha medo de machuca-la, ou de obriga-la a algo que não tinha vontade.
Sem soltar a fita ela me disse:
- O que é suficiente?
Não sabia se deveria pedir socorro ou responde-la.
- O que é suficiente?
Ela repetiu a pergunta.
- Eu, ... eu sou suficiente.
Respondi.
Ela soltou a fita e desapareceu em baixo da vitrine. Acompanhei a sua imersão no vão, entre a vitrine e o chão. Vagarosa. Enquanto imergia repetia com voz que some:
- Nós. Nós. Nós...
Décimo dia do mês. Sai da loja com a fita vermelha na mão. Não fui pagar as contas, voltei ao que era suficiente. 

O caso K.

Não posso dizer já ter visto de tudo na minha profissão. Eu apenas a iniciei. Mas o que conto é algo extraordinário. Abri recentemente minha clinica odontológica e estou ainda formando uma carteira de clientes. Por volta de um mês a mãe veio com a filha para uma consulta, queria que eu verificasse uma ferida no céu da boca da filha. A menina, 15 anos, tinha um aspecto pálido e olhos embaçados. Perguntei à mãe se ela estava conseguindo se alimentar bem. A mãe respondeu que estava absorvendo apenas liquido. Pedi então que a menina abrisse a boca e não fosse a mascara, teria desmaiado tal forte estava seu hálito. Examinei então a boca da menina e devo confessar que era a primeira vez, espero seja a ultima, que via algo do gênero. Sem saber que procedimento tomar, indiquei uma medicação e pedi à mãe que providenciasse uma biopsia e retornasse o mais breve possível. Dois dias depois a mãe voltou com a biopsia. Deu-se então meu espanto. O resultado da biopsia apontava que a ferida na boca da filha era provocada por uma bactéria encontrada apenas em cadáveres. Inquirindo, então, a mãe, com certa resistência, narrou-me que ela e a filha procuravam em sites de relacionamentos homens que se relacionassem com as duas e encontraram um sujeito que se dizia trabalhar no IML. Isto poderia explicar a bactéria. Como eu não tinha recursos em minha clinica para acompanhar o caso da filha, orientei a mãe a procurar uma clinica especializada em câncer bucal. Fiquei, no entanto, intrigado com a situação e narrei-a a um amigo jornalista que resolveu procurar a mulher para uma matéria. O fato é que lendo o jornal está manhã fiquei estupefato: “Policia encontra cadáver de mãe e filha em apartamento de médico criminalista”. Na noite de ontem, a polícia por meio do jornalista X chegou ao apartamento do médico criminalista K, onde encontrou conservado em uma banheira com formol os corpos de Z e Zz, mãe e filha, que, há dois anos, encontravam-se desaparecidas. K sofre de desvio sexual e mantinha regular relacionamento com os corpos encontrados em seu apartamento. Quem levou a polícia ao médico criminalista, foi o jornalista X deste jornal, que desenvolvia matéria sobre relacionamentos na Internet e casualmente deparou com a história das mulheres desaparecidas.




Cláudio Domingos

Perdido no Tempo ou Sr. Adauto

I – O Dia

Todos os dias dos últimos vinte e cinco anos ele seguia aquela mesma rotina. Acordava as 4h30 da manhã, tomava um banho de precisos oito minutos e vestia o seu uniforme, uma camisa pólo que ele conseguia manter sempre impecavelmente branca, acompanhada de calças de sarja marrom. Antes de sair tomava apenas um pouco de leite gelado, e nunca deixava de lavar o copo, recolocando-o no armário, no exato lugar de onde o copo tinha saído, para usá-lo no dia seguinte. E no dia seguinte, e no dia seguinte, e no dia seguinte...

            Às 5h saía de casa, rumo ao ponto de ônibus, com o cordão do crachá já pendurado no pescoço, porque o Sr. Adauto (esse era o seu nome de batismo) gostava de ganhar tempo. As horas, minutos e segundos eram controladas por ele com mãos férreas. Todos os colegas de trabalho, encarregados e gerentes que o conheceram naquela indústria de brinquedos que ele servia há tanto tempo conheciam muito bem aquela sua característica. Alguns caçoavam dele, e com o passar daquele mesmo tempo que ele gostava tanto de administrar, acabou ganhando o apelido de Seu Inglês, em clara referência aos supostos hábitos londrinos. Mas boa parte das pessoas simplesmente o admirava pela sua pontualidade e rigor, afinal, Sr. Adauto não era um homem ruim. Também não era feio nem bonito, apenas respeitável. Não se podia dizer que ele era burro ou inteligente, apenas calado demais. Não exercia a mesma função de quando entrou na fábrica, mas sempre atuou no mesmo setor, o da qualidade. Era uma boa fábrica, aquela em que ele trabalhava. Principalmente boa para suas ambições, que não eram muitas.

            Era uma quarta-feira, que poderia ser apenas mais uma na vasta lista de quartas-feiras em que ele batia o ponto, às 6h. Ele pensa que irá atravessar o galpão da fábrica e subir as escadas que dão acesso a sua sala. Pensa que irá sentar-se na sua mesa e começar mais um expediente. Pensa que irá cumprir a sua hora de almoço e que voltará para o trabalho, até o momento em que o relógio lhe diga que são 14h e que ele deve voltar para casa, para voltar no dia seguinte, no dia seguinte, no dia seguinte...

            Mas hoje não vai ser uma quarta-feira como todas as outras. E nem as próximas serão. Hoje o Sr. Adauto será demitido. Ele só ainda não sabe disso.

II – O Dia Seguinte

            Acorda. Espreguiça. Levanta. Escova os dentes. Despe-se. Liga chuveiro. Oito minutos.

            Copo de leite gelado. Guarda o copo. Pendura crachá. Sai para a rua.

            Só nesse momento, nesse exato momento em que o seu corpo sai para a rua que ele se dá conta de que o tempo foi embora. O que fazer, para onde ir? O dia ainda não tinha raiado, estava escuro. Ficou parado na calçada de casa, sabendo que tinha que voltar, mas ele não sabia como voltar naquele horário. Ele só sabia voltar às 14h, só sabia voltar se ele estivesse na fábrica de brinquedos, de lá ele sabia o caminho. Da calçada de sua casa, naquele horário, ele não sabia. Ficou parado por um bom tempo que ele não saberia dizer quanto, ele não tinha mais o controle das horas. O relógio de pulso lhe indicava um número, mas aquele número não lhe fazia mais sentido. Ele não percebeu, mas ficou ali parado a manhã inteira, preso em sua liberdade. Só se mexeu quando o celular dentro do bolso tocou. Era a moça do departamento pessoal da fábrica: - Sr Adauto, boa tarde. Percebemos que o senhor esqueceu-se de devolver o crachá ontem. Poderia nos trazer amanhã, por gentileza, para darmos baixa? Pode ser em qualquer horário dentro do funcionamento do DP. Sr. Adauto? Alô, senhor, está me ouvindo? Alô? Alô?

            A ligação caiu. Pode ser em qualquer horário, a funcionária do DP havia dito. Aquilo lhe feria de uma maneira que não conseguia compreender, feria muito. Praticamente a vida toda ele cumpriu os horários, aqueles impostos pelo trabalho e os impostos por ele, e de repente, de um dia para o outro, alguém lhe pede para fazer algo e pode ser em qualquer horário?

            Entrou em casa meio sem saber como conseguiu entrar. Sentado no sofá, ficou olhando com um olhar de desalento para a sua foto do crachá, de quando era útil para a sociedade, de quando era útil para o tempo, de quando servia para o dia, e para o dia seguinte, e para o dia seguinte, e para o dia seguinte...




Mônica Pinheiro
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