quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Vermelho-fita dos lábios teus

Marco Maida


            Décimo dia do mês. Recebo o salário devido pelo meu esforço: uma troca, um contrato. Trato feito; trato com esse mundo. Finco os pés, reconheço-me força-trabalho, domado:qualquer coisa de selvagem em mim dorme. Melhor assim!
            Décimo dia do mês. Com o soldo na mão saldo minhas dívidas. Fico sem saldo: vermelho. Meu sangue esvai-se em intermináveis horas de trabalho, salário, e enfim, com o sumo de mim, consumo o que me consome – serviços!
            O que é necessário nem sempre é suficiente. Enquanto ando penso: o que é suficiente? Talvez um místico sufi que sabe bem das coisas. Adoro a tradição sufi no islamismo. Conheci um místico sufi em 2002: Mohamed AL Kabul, cego, casado, um visionário. Ele era suficiente, porque sabia que precisava de pouco para viver.
O necessário não é suficiente, murmuro. Tenho desejos. Não consigo deixar de ser corpo e de permitir ao corpo a vontade. A vontade tem a ver com um movimento interno e é o corpo que impulsiona o complexo de elementos que constitui o ser humano a agir. O desejo é motivação externa, promove a vontade. A vontade é natural, até os animais são movidos pela vontade, mas tenho duvidas se lhes acontece o mesmo no âmbito do desejo. Esse está ligado a cultura, aos fluxos humanos que significam o mundo.
Décimo dia do mês. A cidade parece mais tranqüila do que costuma ser. Arrisco entrar em uma loja para olhar a vitrine. Pouca gente transitava pelos corredores. Os vendedores ficavam pelos cantos falando amenidades. Adoro essa palavra: amenidades. Dá vontade de pronunciá-la com a boca cheia de pétala de flores. Sempre que ouço alguém pronunciando essa palavra posso jurar ver pétalas de flores escorrer-lhe pela boca. Passo os olhos pelos produtos encarcerados atrás da vitrine: vítimas do desejo ou sua objetivação? Não sei...; desço o olhar para verificar o preço de um produto e vejo uma fita vermelha caida no chão que corria para debaixo da vitrine. Decidi puxar a fita para entregá-la para uma das vendedoras, quem sabe ficaria por ali falando amenidades. Puxei a fita, resistiu. Obstinado aumentei a força; sem resultado. Olhei embaixo da vitrine para certificar-me se algo prendia a fita vermelha. Vi o rosto branco de uma Gueixa, ela segurava a fita vermelha em sua boca. Cabelo preto, volumoso e preso em coque; olhar lânguido, sugeria prazer. Seu rosto, branco como porcelana, fenômeno de si. A fita vermelha era uma extensão de seus lábios. Segurei firme a fita e puxei com a intenção de salvar a Gueixa de lá de baixo. Fiquei com medo, pensei por alguns minutos o que tinha acontecido para aquela mulher ficar presa ali embaixo da vitrine. Um acidente, talvez? Tinha medo de machuca-la, ou de obriga-la a algo que não tinha vontade.
Sem soltar a fita ela me disse:
- O que é suficiente?
Não sabia se deveria pedir socorro ou responde-la.
- O que é suficiente?
Ela repetiu a pergunta.
- Eu, ... eu sou suficiente.
Respondi.
Ela soltou a fita e desapareceu em baixo da vitrine. Acompanhei a sua imersão no vão, entre a vitrine e o chão. Vagarosa. Enquanto imergia repetia com voz que some:
- Nós. Nós. Nós...
Décimo dia do mês. Sai da loja com a fita vermelha na mão. Não fui pagar as contas, voltei ao que era suficiente. 

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