quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Perdido no Tempo ou Sr. Adauto

I – O Dia

Todos os dias dos últimos vinte e cinco anos ele seguia aquela mesma rotina. Acordava as 4h30 da manhã, tomava um banho de precisos oito minutos e vestia o seu uniforme, uma camisa pólo que ele conseguia manter sempre impecavelmente branca, acompanhada de calças de sarja marrom. Antes de sair tomava apenas um pouco de leite gelado, e nunca deixava de lavar o copo, recolocando-o no armário, no exato lugar de onde o copo tinha saído, para usá-lo no dia seguinte. E no dia seguinte, e no dia seguinte, e no dia seguinte...

            Às 5h saía de casa, rumo ao ponto de ônibus, com o cordão do crachá já pendurado no pescoço, porque o Sr. Adauto (esse era o seu nome de batismo) gostava de ganhar tempo. As horas, minutos e segundos eram controladas por ele com mãos férreas. Todos os colegas de trabalho, encarregados e gerentes que o conheceram naquela indústria de brinquedos que ele servia há tanto tempo conheciam muito bem aquela sua característica. Alguns caçoavam dele, e com o passar daquele mesmo tempo que ele gostava tanto de administrar, acabou ganhando o apelido de Seu Inglês, em clara referência aos supostos hábitos londrinos. Mas boa parte das pessoas simplesmente o admirava pela sua pontualidade e rigor, afinal, Sr. Adauto não era um homem ruim. Também não era feio nem bonito, apenas respeitável. Não se podia dizer que ele era burro ou inteligente, apenas calado demais. Não exercia a mesma função de quando entrou na fábrica, mas sempre atuou no mesmo setor, o da qualidade. Era uma boa fábrica, aquela em que ele trabalhava. Principalmente boa para suas ambições, que não eram muitas.

            Era uma quarta-feira, que poderia ser apenas mais uma na vasta lista de quartas-feiras em que ele batia o ponto, às 6h. Ele pensa que irá atravessar o galpão da fábrica e subir as escadas que dão acesso a sua sala. Pensa que irá sentar-se na sua mesa e começar mais um expediente. Pensa que irá cumprir a sua hora de almoço e que voltará para o trabalho, até o momento em que o relógio lhe diga que são 14h e que ele deve voltar para casa, para voltar no dia seguinte, no dia seguinte, no dia seguinte...

            Mas hoje não vai ser uma quarta-feira como todas as outras. E nem as próximas serão. Hoje o Sr. Adauto será demitido. Ele só ainda não sabe disso.

II – O Dia Seguinte

            Acorda. Espreguiça. Levanta. Escova os dentes. Despe-se. Liga chuveiro. Oito minutos.

            Copo de leite gelado. Guarda o copo. Pendura crachá. Sai para a rua.

            Só nesse momento, nesse exato momento em que o seu corpo sai para a rua que ele se dá conta de que o tempo foi embora. O que fazer, para onde ir? O dia ainda não tinha raiado, estava escuro. Ficou parado na calçada de casa, sabendo que tinha que voltar, mas ele não sabia como voltar naquele horário. Ele só sabia voltar às 14h, só sabia voltar se ele estivesse na fábrica de brinquedos, de lá ele sabia o caminho. Da calçada de sua casa, naquele horário, ele não sabia. Ficou parado por um bom tempo que ele não saberia dizer quanto, ele não tinha mais o controle das horas. O relógio de pulso lhe indicava um número, mas aquele número não lhe fazia mais sentido. Ele não percebeu, mas ficou ali parado a manhã inteira, preso em sua liberdade. Só se mexeu quando o celular dentro do bolso tocou. Era a moça do departamento pessoal da fábrica: - Sr Adauto, boa tarde. Percebemos que o senhor esqueceu-se de devolver o crachá ontem. Poderia nos trazer amanhã, por gentileza, para darmos baixa? Pode ser em qualquer horário dentro do funcionamento do DP. Sr. Adauto? Alô, senhor, está me ouvindo? Alô? Alô?

            A ligação caiu. Pode ser em qualquer horário, a funcionária do DP havia dito. Aquilo lhe feria de uma maneira que não conseguia compreender, feria muito. Praticamente a vida toda ele cumpriu os horários, aqueles impostos pelo trabalho e os impostos por ele, e de repente, de um dia para o outro, alguém lhe pede para fazer algo e pode ser em qualquer horário?

            Entrou em casa meio sem saber como conseguiu entrar. Sentado no sofá, ficou olhando com um olhar de desalento para a sua foto do crachá, de quando era útil para a sociedade, de quando era útil para o tempo, de quando servia para o dia, e para o dia seguinte, e para o dia seguinte, e para o dia seguinte...




Mônica Pinheiro

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