terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Marilu, olhos e flores

-            Acorda, Malu! Acorda! – disse Sara, sacudindo, apressada e bruscamente, o seu ombro.
- Está chegando outro paciente.

Marilu abriu os olhos, assustada – começava a sonhar. As pálpebras pesavam como se estivessem suspensas por chumbos. Sentia-se perdida, confusa, mas, de súbito, a consciência se recobrou, treinada pela rotina do ofício de enfermeira.

Olhou, automaticamente, o relógio de pulso: vinte e uma horas e vinte e sete minutos. “Não dormi nem trinta minutos, esses plantões ainda vão me matar” – reclamou para si mesma em pensamento, enquanto fazia homérico esforço para se levantar. “Ainda falta mais de uma hora para o fim do martírio” – lamentou, no momento em que suas autoqueixas foram interrompidas pela voz insistente da companheira:

-            Apressa-se! O sujeito tomou dois tiros... vamos pra sala de cirurgia. Vai!

-        Estou indo. Estou indo – respondeu sem vontade, fazendo uma careta de nojo por  causa do café frio e passado que engolia, porém este, apesar do mau gosto, tinha certo efeito animador.



....................................................................................................................................................

....................................................................................................................................................





Vinte e duas horas e quarenta minutos. Marilu descia o elevador do Hospital Carmino Caricchio do bairro Tatuapé. Tinha acabado de passar o plantão para a sua substituta. “Doze horas: só louco trabalha doze horas seguidas” – censurava-se ao acender um cigarro e cumprimentar o segurança. Como era de praxe, andava aqueles três quarteirões até a estação Carrão do metrô, cheia de piedade e crítica para consigo mesma: era seu meio de não pensar no cansaço do corpo, seu automatismo fisiológico inconsciente. “Ataxia, gastrostomia, nevralgia, mielografia, hiponatremia... ah... não agüento mais tantos ias... um dia mando tudo pro espaço... é... esse paciente não tinha jeito, dois balaços no peito, pulmão direito perfurado, traumatismo na quarta vértebra torácica, vários outros órgãos danificados seriamente, e ainda era hemofílico o azarado... foi melhor que se fosse de uma vez: era caso de coma dépassé, viraria um vegetal. Teve sorte o pobre diabo”.

E assim dava passo após passo, sem se dar conta do estado deprimente em que se encontrava. Só voltava a si já no vagão do trem, quando via seu reflexo no vidro: as enormes olheiras, o rosto como que se tivesse acabado de sair de um campo de batalha, a fisionomia triste e agastada.



........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................      





Vinte e duas horas e cinqüenta e oito minutos.

-            Tim! Tom! Estação Tatuapé – anunciava a voz do operador do trem, voz que sempre a

acordava.

“Por que essa maldita voz?! Como odeio essa estação. Lá vêm todos aqueles adolescentes com sorrisos nos lábios e bradando, em vez de conversarem. São uns tolos mal educados” – pensou zangada.

Marilu não suportava a alegria banal dos jovens: sempre a tornava nostálgica. Ela um dia fora assim. Jovem, bela, feliz. Mediocremente tola e feliz. Achava que tinha sido enganada. E, para piorar, acreditara nas mentiras. Todos os familiares, amigos, conhecidos, tinham lhe dito:

-            Como você é linda Marilu...

-            Vai se dar bem na vida...

-            Vai se casar com um ricaço...

-            Vai ser modelo...

-            Vai virar atriz de novela...

 Marilu não compreendia porquê não era feliz. Está certo que ela não buscou na sua vida nenhuma dessas profissões glamourosas, nenhum marido rico. “Mas essas coisas não se buscam” – era como se confortava.

Quando via essas belas raparigas, lembrava-se da sua própria beleza de outrora. Como fora bela aquela Marilu. Não que ainda não tivesse beleza, mas como fora bela. Tinha olhos negros como o céu de noites sem lua e estrelas. O rosto bem feito e delicado. O nariz era uma hipótese de porcelana no seu rosto largo, de tão pequenino. A boca carnuda, sensual, fugidia. Belos cabelos negros e lisos como os de Iracema de Alencar. Corpo magro e bem torneado. Falanges um pouco compridas em braços que poderiam ser confundidos com o pescoço dos cisnes.  Ah... seus olhos arredondados e ligeiramente puxados... assemelhava-se a rainha do Egito Antigo. “Eu era mais bela que todas essas menininhas. Não existia um só rapaz que não me desejasse. Por que não fui feliz?” – indagava-se.

Logo que seu inconveniente reflexo aparecia no vidro, como uma imagem não autorizada, porém necessária, Marilu encontrava um motivo: “Estou péssima. Cadê aquele brilho que carregava nos olhos... só me resta olhos sem paixão” – sentenciava-se, fechando-se na própria tristeza, diria uma flor que pressente a chegada do inverno. Esquecia-se do rosto que já não era tão bem marcado. Do atual cabelo curto e prático, como a sua vida. Dos lábios descorados. Do nariz, que num rosto mais maduro e cheio, parecia se negar a existir. Como todo o resto custava a acontecer. E do corpo, que como a alma, estava fatigado, com uma dose a mais de tecido adiposo, e já não mais exalava a doçura das aves em vôo.



........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................





Vinte e três horas e dezesseis minutos. Marilu desperta na parada da Estação Bresser. Pegara no sono. Seus olhos permanecem turvos por alguns instantes. Quando vê a placa com o nome da estação, lamenta: “Ainda aqui... até chegar no Paraíso... que droga: tenho que fazer baldeação”.

No momento em que vira a cabeça para conferir as horas no relógio de pulso, vê um jovem sentado no banco em frente. Ele lê um livro. Parece calmo e distante. Cabelos compridos e desenvoltos, belo rosto, corpo bem feito e que incomparável par de olhos possui aquele jovem. Marilu sente-se hipnotizada: “Que belo rapaz. Que olhos brilhantes: parecem faróis numa praia noturna e deserta. Como é bonito... e tão jovem”. Nesse exato instante algo guardado no mais fundo de si renasce. Algo que ela escondera tão disfarçadamente que jamais encontrara. Sentiu como que um vulcão dentro do peito. Um vulcão há muito adormecido, que agora começava a quebrar a crosta que sua própria lava formou. É quase impossível descrever o que ela sentia. Era algo como uma tempestade, um grito agudo e dolorido, dois tiros no peito, uma vida renascendo enquanto outra acabava de se esvair, uma sutil rosa que começava a se abrir com o suave sopro da primavera. “Estou apaixonada...” – suspira Marilu para o próprio coração, que parecia exigir uma resposta do porquê voltava a funcionar, depois de anos de inércia. “Está lendo Pessoa. Gostava tanto de Pessoa. Como eram aqueles versos? Deixe-me lembrar:

‘Não quero rosas, desde que haja rosas.

Quero-as só quando não as possa haver.

Que hei de fazer das coisas

Que qualquer mão pode colher?’

O rapaz é um romântico: sempre esperei um belo poeta.”

Subitamente Marilu parecia mais desperta do que nunca. Tão desperta que se viu a olhar para o rapaz, viu seu vulto de mulher apaixonada. Sua espera, todas as suas recusas pareceram se justificar. Sentiu as pernas moles (de cansaço ou de susto?), o coração pulsava-lhe a mil. Também viu que o rapaz a olhou de soslaio e esboçou um leve e malicioso sorriso. Desviou o olhar que não durou mais que alguns segundos. Olhou para o lado, viu que uma senhora a observava e corou violentamente. E violentamente sentiu-se envergonhada, invadida e profanada. “Que velha enxerida, vai cuidar da sua vida... mas... mas... talvez ela tenha razão. Como pode uma mulher de quase quarenta anos se apaixonar por um rapazola que não parece ter mais de vinte e cinco?” – refletiu num misto de ódio, rancor e agradecimento.

Marilu deu mais uma olhadela para o rapaz, que retribuiu o olhar. Aqueles dois faróis romperam a negra névoa que cobriam os seus olhos, adentraram em sua retina. Eram demasiado poderosos e ofuscantes. Ela lembrou-se do seu rosto cansado, da sua perdida beleza. Ela se cegou. Abaixou de supetão as pálpebras. Ainda pode ver os últimos raios daqueles dois sóis: o crepúsculo inigualável nos mares. Engoliu um soluço seco e pegadiço. Pensou: “Não, ele zomba de mim, deve ser um sádico”.E fechou-se novamente.



........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................





Vinte e três horas e vinte e oito minutos. O trem diminui a velocidade. Marilu continua com os olhos cerrados: tem medo de abri-los e não mais encontrar o rapaz. Fingia dormir, mas todo o sono passara. Passara ela num turbilhão de pensamentos nos últimos minutos: furacões de lembranças, maremotos de anseios, suturas de tecidos rasgados à faca, olhos de pacientes, olhos de crianças, idosos, mendigos, olhos de mortos e de sangue, olhos e mais olhos, tépidas angústias, oprobriosos desejos, flores se abrindo, pétalas fechando-se, inverno, primavera, oceanos, geadas, cubarins, taquicardia, AVC, ataques crônicos de pânicos, poetas e mais poetas, versos e mais versos, recordações de infância, mãe que se foi, pai moribundo, irmãos que não teve, e olhos, olhos de cão, de médicos, de menina chorando sobre o cadáver da mãe, olhos negros e perdidos nas rodas da alma, olhos dos filhos que poderia ter tido, olhos mortos, olhos vivos, soromas, flores, versos, azaléias azuis como o mar, orquídeas roxas como a cianose, liberdade, olhos da liberdade, escolhas, rosas escarlates, hemoglobina, curativos, fome de amor, olhos de amor, olhos da noite, solidão, olhos mortos, flores, olhos mortos das flores.

O trem está cada vez mais lento. Ela sabe que aquela odiosa e aborrecedora voz surgirá depois do apito. Deseja no mais íntimo do seu ser que a voz diga: “Por problemas técnicos, o trem ficará com as portas fechadas e parado por toda a eternida...” Mas, antes de concluir o desejo ouve o apito, estremece. A voz diz:

-            Estação Sé. Desembarquem pelo lado esquerdo do trem.

Marilu sente as mãos em estado de hipotermia, o pulso sofre nítida braquicardia, a respiração parece entrar em apnéia e o coração, por vontade própria, pára. Aflita, abre os olhos. Lá está o poeta. Fecha graciosa e lentamente seu livro, suspira. Seus olhos perdem-se em devaneios. Parecem repletos de amor. Ela pensa que tem que descer nesta estação. Mas não quer. O rapaz não demonstra que descerá. Marilu tem incontrolável vontade de se levantar, e, inesperadamente, beijá-lo. O trem está quase parado. Ela se levanta. Olha novamente para os olhos do rapaz que estão lá: aquecendo sua inócua vida. O rapaz lhe sorri outra vez. Ela dá um passo. Depois outro. E mais outro. Ele como que a aguarda, sorridente no seu reino de beleza e juventude. Parece se sentir um Alexandre ou Kan ao final de uma batalha vencida. O trem pára. As pernas de Marilu, voluntariamente, desviam-se do trajeto traçado. Ela tenta resistir. Inútil. Um, dois, três, quatro passos. Já está fora do trem. Percebe braços lhe empurrando pelas costas. As pernas dão mais dois passos. Finalmente retoma o controle do corpo. Estanca-se. Ouve o apito. Vira-se imediatamente. Marilu vê a porta se fechando. Quer correr, segurar a porta, entrar no vagão, olhar nos olhos do rapaz, dizer-lhe: “meu amor, finalmente retornar-te”, beijar-lhe loucamente. Mas se recorda do seu tempo de beleza. De juventude. Vem a sua passiva memória o rosto de Júlio.

“Quando eu tinha dezenove anos amava um rapaz tão belo como esse. Os olhos de Júlio eram tão fortes, seguros, tão lindos. Mas eu não fiquei com ele. Deixei que se fosse, e hoje...” – recordava-se, quando foi interrompida pelo estalar da porta fechada, o trem que começa a retomar sua marcha. Teve vontade de correr atrás do trem. Bater na porta. Bater e gritar. Gritar insanamente. Pular nos trilhos. Mas não o fez. Estava como que pregada ao chão: dir-se-ia que a gravidade a sucumbia. Um peso insuportável de tão leve nos ombros. Não correu, não gritou, não pulou. Somente acompanhou o trem com os olhos e pensou amargamente: “Jamais o encontrarei novamente”.



........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................





Quatro horas e trinta e nove minutos. Marilu abre os olhos drasticamente. Vacilante, perdida: estivera sonhando. Sua garganta está seca. Tem sede. “Onde estou?”. Olha para o teto escuro, imperceptível. Não compreende. Passa a mão na face para desanuviar os olhos. Tateia o rosto úmido. Lembra-se que chorou e enorme repulsa de si mesma a invade. “Estive chorando como uma menina” – acusa-se.

Deitada de costas, estende o membro superior esquerdo, num gesto indeciso e vazio. Não apalpa nada além do lençol desarrumado. Fecha delicadamente as falanges, segurando o lençol em desespero contido. “Nada. Eu só. Eu comigo mesma”. Um buraco lhe domina o peito: vácuo. Distingue dois imensos olhos no teto negro. À sua consciência ressurgem fragmentos do sonho: olhos de Júlio, seus próprios olhos, olhos de mortos, olhos vivos, os olhos do rapaz do trem. Para afastar a visão do sonho, tenta reconstituir a face do rapaz, mas só se recorda dos olhos. Um soluço amargo, indesejado, repugnante, muito viscoso, perturba-lhe a faringe.  Uma lágrima escorre do seu sombrio olho. Lágrima de dor. De fugitiva. De estrangeiro desconsolado em terras distantes. O corpo clama por água. Seu corpo se ergue. Senta-se na cama e algo como uma pontada lhe penetra na nuca. Levanta-se. Começa a andar. “Malditas pernas” – pensa. Vai a cozinha. Abre a geladeira. As pálpebras se contraem em reação a luz daquela caixa do pólo. Sua mão que tateara no escuro do quarto e no da cozinha, agora tateia no claro da geladeira. Segura sem forças a garrafa de água. Bebe no gargalo. O frio da água corta-lhe a garganta como se bebesse cacos de vidro. Guarda a garrafa. Caminha até o banheiro sem ter pensado em ir ao banheiro. Abre a porta, acende a luz, distende as pálpebras com virulento esforço. Capta seu rosto triste no reflexo do espelho. No mesmo espelho surge seu uniforme branco de enfermeira, pendurado no espaço. Relembra-se que terá que voltar ao hospital, ao seu sufocante serviço. Apaga a luz. Sem pensar em nada vai até o quarto. Deita seu corpo nu e solitário na cama. Fecha os olhos negros.



........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................





Quatro horas e quarenta e sete minutos. Marilu adormece como uma flor que fecha, impetuosa e estranhamente, suas pétalas, por haver descoberto seu estado vegetal, diria um estado de coma auto-induzido, naquele fim de madrugada sem sonhos, olhos ou esperanças.



-----------------------------------------------------------------------------------------------------------    

FIM



    

 Hélcio Lopes

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente aqui

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...