quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Dezesseis anos

            --- Faz tempo que a gente não fica assim... juntas, né? – disse sentando-se ao lado de Renata.
            --- É... nós precisamos colocar as fofocas em dia! Pena que hoje eu tenho inglês... Você tem alguma novidade? – enganchou-se nos braços de Luíza.
            --- Deixa eu ver...
            Luíza procurava na mente algo pra contar e enquanto a semana retrocedia confusa em seus pensamentos, as duas começaram a balançar as pernas fazendo o colchão pulsar molemente. Estavam sentadas no beliche, no quarto de Luíza, na parte de baixo com as costas apoiadas na parede. Era ali naquele canto o qual sempre ficavam, como numa cabana... (quando eram menores, cobriam o beliche com lençóis e ali brincavam protegidas, misturavam-se com as bonecas e com os sonhos futuros diluídos numa simples brincadeira, toda menina um dia brinca de “casinha”). E ali costumavam passar horas conversando... sobre tudo.  Hoje, esse “tudo” já não cabia nas poucas horas que lhes sobravam.
            Luíza sempre demorava a encontrar alguma coisa pra contar. Não que não houvesse nada pra contar, ou que não quisesse fazê-lo, mas é que a maioria dos fatos eram tão cotidianos, tão sem importância que Luíza não tinha grande interesse em recordar-se e repassá-los aos outros. Ou então, eram fatos angustiosos, ansiedades que a tanto custo mantinha guardadas, esperando que o tempo passasse e que pudesse sentir-se mais segura para confidenciá-las a alguém, talvez. E entre esses meditativos intervalos, Renata sempre iniciava algum assunto.
            --- Sabe quem eu vi?
            --- Quem?
            --- O Paulo!
            --- Onde?
            --- É que foi assim: eu estava andando na rua da casa da minha tia e aí eu o vi. Ele estava com aquela menina esquisita!
            --- Mas ele está ficando com ela?
            --- Bom... Ah, com certeza! Aquele lá não passa uma semana sem estar com alguém.
            --- O Paulo é fogo né? Tá sempre apaixonado, sempre sofrendo... Eu já nem sei mais quantas vezes ele já encontrou e desencontrou as almas gêmeas dele...
            --- Não sei como ele não se toca!
            Ficaram alguns instantes em silêncio. Preocupada em parecer interessada na conversa Luíza comentou:
            --- Um dia, quando ele se apaixonar de verdade, nem vai perceber.
            --- O pior é quando ele vem dizer pra  gente que “dessa vez ele encontrou a menina certa”!
            Vendo que a amiga continuou o assunto, resolveu complementar:
--- Sabe que eu já nem sei quando é que ele está apaixonado, ou quando está sofrendo! As coisas com ele acontecem tão rápido... que eu acho que ele se apaixona e sofre ao mesmo tempo!
            Riram as duas. Renata começou a contar o que estava fazendo em casa antes de se encontrar com Luíza.
“Gozado! Os fatos, por mais comuns que fossem, sempre pareciam ter mais importância ou uma importância diferente quando narrados pela Renata. Acho que é o jeito único e expressivo que ela tem, que faz com que eu não me importe em ouvir. Sou do tipo que gosta de escutar as pessoas, talvez assim eu nunca precise falar muito. Eu pensava muito antes de falar alguma coisa e as pessoas não têm paciência para esperar, interpretam qualquer pausa como o fim de uma fala e se põe desesperadas a falar para preencher qualquer vazio constrangedor. Ela tem uma alegria e um brilho nos olhos ao contar sobre a vida comum... Era uma das coisas que mais admirava na Renata. Deixar de lado um pouco as complexas filosofias, e observar apenas a vida que corre cíclica e viciosamente; a vida que é igual pra toda a gente, a vida comum de pessoas comuns e que são tão especiais por isso. Comigo é o contrário, minha cabeça parece uma máquina que pensa interminavelmente... pensa, pensa, pensa... e às vezes, aliás, muitas vezes, a vida parece não se incorporar aos meus espasmos racionalóides”.
            --- Rê, posso te fazer uma pergunta?
            --- Claro!
            --- Mudando totalmente de assunto... É, não é bem uma pergunta, é que acontece de vez em quando uma coisa esquisita comigo...
            --- O quê? – virou para Luíza 
            --- Eu fico imaginando minha mãe morta.
            --- Ai que horror!
            --- Não, calma! Peraí, deixa eu explicar...
            Luíza mergulhou os olhos num vazio profundo, não parecia enxergar o que estava a sua frente, mas parecia ter os olhos voltados para dentro como se estivesse a assistir imagens dentro da mente hipnotizada...
            --- Sabe...
            Respirou largamente, em seguida pôs-se a falar como se estivesse a descrever um cenário.
            ---...Eu nunca perdi nenhum parente, nenhum amigo... nem mesmo algum conhecido com quem eu tivesse mais amizade... A morte nunca esteve perto de mim... Graças a Deus! E nem quero que esteja, não é isso!
 Renata ouvia atentamente o que Luíza dizia, mas não pôde conter um olhar fugidio até o relógio na escrivaninha... eram 14:32h. Mais um pouco e teria que ir embora, tinha curso de inglês às quatro horas da tarde, tinha ainda que passar na casa de sua avó para trocar de roupa e pegar seus livros.
            --- Não é de hoje que, de repente, assim do nada, eu tenho imagens que entram na minha cabeça sem que eu tenha controle, sabe? Passam assim como se fossem cenas...
            --- Você tem medo que a sua mãe morra, é isso?
            --- Eu tenho muito medo disso, mas não é que eu pense que ela vá morrer, é mais do que isso... Eu sei que ela vai! Entende?
            --- Não... Não estou entendendo porque você está falando disso... Você está com uma expressão, com uma cara que eu nunca vi antes... credo! Você fala de um jeito tão bonito e difícil, devia ser poeta ou psicóloga como a sua mãe. - respirou longamente e concluiu – Bom, eu não sei se estou te entendendo direito Lú, o que eu entendi é que você anda com muito medo de acontecer alguma coisa com a sua mãe, é isso?
            “Era. Era? Não, era bem mais do que isso na verdade, mas como querer que ela entenda, se nem mesmo eu entendo muito e também não sei explicar, e também eu não queria explicar nada, eu nem devia ter dito nada... É por isso que a Renata me irrita às vezes... eu tenho sempre que ter algo de novo pra contar... Acabo contando essas coisas que eram pra ficar apenas dentro de mim... e agora estão lá... Expostas, espalhadas pelo chão... o tempo escasso e eu sem saber como juntar tudo pra colocar novamente na minha mente do mesmo jeito em que estavam antes de falar qualquer coisa. Água, uma vez entornada toma a forma do recipiente em que está. Muito bem, então a forma agora era essa, eu tinha medo de que algo acontecesse com a minha mãe... Era isso também, e talvez, já que eu não entendo muito o que eu mesma estou sentindo seja bom que eu mantenha essa explicação comigo: eu tinha medo de que algo acontecesse com minha mãe. Era isso”.                   
            Lá fora, pelo retângulo da janela do seu quarto, a cor da tarde era amarela, misturada ao verde do enorme jardim da frente, cheio de sombras agitadas, redondas, musgosas, no formato de pequenas folhas e galhos. Diversas flores e silhuetas de plantas de espécies variadas nimbadas de intensa luz solar. Ventava e tudo era calmo, amarelo acaramelado, cor de uma pêra madura. Um bafo morno e um cheiro verde da grama amolecida pelo sol das quinze horas.
--- Ninguém pode saber quando exatamente uma pessoa vai morrer, mas todos nós sabemos que vamos morrer um dia.
--- Haaa, mas até ai isso é normal né? Todo mundo morre... um dia...
--- Mas por quê?
--- Ué Luíza, porque sim, oras... É assim que acontece com todo mundo... as plantas, as células, sei lá mais o quê... Não fica pensando nisso não, sua mãe tá bem não tá? Então...
            Queria perguntar à Renata como havia sido quando soube que sua avó havia falecido, mas seria chato trazer esse assunto pra ser esmiuçado, era recente e Renata adorava aquela avó.
            E agora começa a idade onde se passa a ter segredos só nossos, onde realmente se tem coisas que não se quer contar...

            Dezesseis anos. Indivíduo.
A mente se desenvolve, se desabrocha,
se desemaranha, se desenreda... Adolescência.
            ...

--- Lú? Lú?
--- É, acho que é isso sim Renata. Mas deixa pra lá, medo bobo, essas coisas depois passam.
            --- É, não fica pensando nisso, coisa triste na cabeça a gente deixa passar que nem vento gelado... Nossa! - ri – Da onde eu tirei essa frase? - riem as duas.
            Luíza sentiu-se arrogante, Renata queria ajudar, queria entender, mas se nem mesmo ela própria entendia ou podia explicar, como podia se irritar com os outros por não compreenderem-na?
--- Você quer comer antes de ir pra lá?
--- Não Lú, não precisa, quando eu chegar eu como na minha vó. - levantou-se e foi até o sofá pegar sua bolsa – Passa lá depois!
--- Eu tenho que esperar minha mãe chegar, senão ela fica brava de não me ver em casa nunca! - risos.
--- Tá bom, aí você me liga se você não for. - disse ajeitando a mochila nas costas.
--- Tá. É, deixa eu abrir a porta pra você, pra você voltar sempre. - sorri.
--- Então, qualquer coisa até daqui a pouco tá? Tchau!
--- Tchau Rê, até.
            Ficou esperando Renata sair pelo portão e só aí percebeu que nem foi até lá abrir para ela. Puxa, que falta de educação! Sou muito distraída mesmo...
            Começou a ventar mais forte, agora a sombra começava a ficar verde com menos da luz morna do sol... é agora que começa a ficar perigoso, sem o amarelo, começa a escurecer rápido. Sua mãe sempre dizia que à noite as coisas sempre parecem piores. Tão bom sentir o vento. Encostou a cabeça na porta semi-aberta e fechou os olhos. Seu cachorro veio lhe lamber os dedos dos pés, pulou na porta, sem conseguir atenção desistiu e voltou para o portão. Uma trança castanha clara desmanchando-se sobre o ombro direito de uma mocinha sonhadora e incontida. Existem rosas negras? Imaginou e desejou como uma criança um lindo buquê com muitas rosas aveludadas e  negras, com nuances azuladas conforme absorvessem a luz. Queria naquele momento um buquê cheio de rosas negras.
            Não se importou que alguém pudesse passar pelo portão e de repente ver uma garota de olhos fechados encostada à porta da sala e que parecia sonhar. O vento, o aroma, a prostração do corpo cansado, tudo era hipnotizador e confortável. Ali, envolvida daquela forma, percebeu que seus pensamentos começavam a surgir e a se desenvolverem, medrarem[i], como ramos e raízes que, sob feitiço, crescem e se espalham rapidamente.
 Transida de assombro, percebeu a sua volta o silêncio humano, percebeu o movimento das coisas, os sons, e tentou sentir-se anulada de tudo aquilo, tentou perceber se essa anulação a faria sentir como se estivesse morta... Apenas um corpo que está, está no meio de toda a movimentação do que ainda é vivo; mas já não escuta, já não percebe, apenas está. Imóvel, como uma pedra deve ser. Aquilo que é duro, que é sólido e que não pulsa, que não tem vontade, no entanto, mesmo assim não espasma; que aduba e se torna parte da terra que ainda vive. O olho que não pisca, a saliva que resseca. A morte de um corpo humano.
            “Mas então o que é que percebe? Quem é que está percebendo algo nesse momento da morte? Minha alma dentro do corpo morto? A alma fora do corpo sem vida? Ou nesse momento sou terra, grama, ar, luz, e percebo o pleno, o todo,  porque me torno parte dele? O solo se empresta a mim como uma incorporação de vida para que eu observe meu próprio encerramento humano? Tornarei-me solo. Ele me absorverá.
            Sem haver Deus, ou céu, sem figuras divinas, sem planos espirituais, sem a luz branca, pura e forte como um túnel, sem imagens... apenas a matéria, a morte da matéria, a morte da alma que tento agora descobrir se também é matéria... o alívio de sair daqui; de deixar o corpo físico que tanto dói e pesa e ser apenas uma aragem morna sem muita personalidade, sem lembranças, sem vontades; seria o suficiente...
            Eu simplesmente deixo de ser? De ser o que gosto, o que prefiro, minhas escolhas, meu jeito de sorrir, de interpretar as coisas; deixo de ser o que estudei, o que li a vida toda e que gostei; tudo o que sonhei? Deixo de ser o que agora não vou mais realizar mas que sempre esperei? Simplesmente deixo de ser o que demorei aquele tempo todo para descobrir que eu era?
            Os meus suicídios são mentais e não físicos; eu já tentei me matar algumas vezes mas fui socorrida a tempo por outros pensamentos, assim como quando se socorre rapidamente alguém que cortou os pulsos e se consegue salvá-la. Matar-me de verdade seria de alguma forma permitir/assumir a insanidade em mim”.
            Imaginou-se então em uma janela no alto de um prédio.
            Tentou pensar como um suicida: “Como alguém poderia ter a coragem de pular?” Há muitos que a possuem...
            Lembrou-se de uma palavra inventada por ela mesma depois de ler um romance de Machado de Assis.

...PRECIPIAR: v.i.1.Começar a se deixar envolver, consentir uma vertigem próximo a um
precipício ou penhasco ou qualquer lugar de grande altura em que a queda
seria fatal; grande perigo.2. Consentir; deixar
se envolver com algo
bastante perigoso
ou fatal.
 Espécie de “volúpia do
aborrecimento” -
definição de Machado de
Assis em Memórias
Póstumas de Brás Cubas.

            Então estava no alto do prédio. É incrível como a consciência pode interferir na mente, mesmo entre as balbúrdias das confusões mentais: “E se eu caísse? E se eu realmente caísse?”

            Poderia estragar tudo por causa de alguns minutos de insanidade e antecedentes meses de angústia. Será que aquele que está prestes a se jogar da janela de um edifício está sempre decidido ao suicídio? Será que ele não quer ou precisa somente sentir o perigo?

            Não parecia estar ali de verdade, era como se estivesse sentada um pouco mais atrás apenas assistindo a toda essa loucura, como a fantasia de enfrentar um perigo e embriagar-se de adrenalina. Sabia que não ía cair...”

            Porém, escorregou... caiu... esmagou-se no duro ladrilho da calçada; pôde sentir o impacto e o quebrar do crânio, os olhos afundavam-se opacos e sem vida, a olharem sem qualquer intenção para o topo dos prédios que pareciam curvados para baixo para ver-lhe o corpo estirado. Sentiu um grosso líquido, viscoso, vermelho e morno, escorrer-lhe entre o couro cabeludo e teve a impressão de que o sangue vasava por de trás dos olhos esbranquiçados. Seu sangue era grosso e maltoso...

            Não, eu não caí de verdade. Não, eu não morri de verdade”.

--- Filha?!

--- Hã?! - o piso gelado acorda seu corpo.

            Abre os olhos, percebe assustada que está no chão, está com a cara entre o piso da garagem e a grama do jardim. A partir desse instante a dor nos supercílios se manifesta.

--- Que aconteceu, você caiu? Levanta meu anjo, vem! Ai meu Deus, deixa eu olhar! Você se cortou, olha aqui! Mas como é que isso foi acontecer menina?

            Luíza levanta mecanicamente. Esteve realmente estirada no chão, em frente à porta. Leva os dedos para a sobrancelha direita e sente que está saindo sangue...
 
Lygia Canelas







[i] Medrar: crescer, desenvolver-se (vegetais); ficar maior, progredir; ganhar corpo, desenvolver-se; sentir medo, apavorar-se.

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