terça-feira, 20 de agosto de 2013

Releitura

Escrever! Escrever!
Escrever até que o mundo acabe!
O mundo inteiro desabando
E o poeta ali sentado.
Coitado!
Mas,
já não lhe basta cantar as próprias dores
Quer ainda cantar as dores alheias?
Já não lhe basta viver a própria angústia,
deve ainda ele incomodar-se da misteriosa condição humana?
Da nebulosa condição humana?
Da degradante condição humana?
Mas, e quando estancar o sangue do último ferido?
E quando parar de ressoar o último estampido,
da última bala perdida
no meio de uma guerra qualquer
ou ainda em tempos de paz?
(mas se trata da pax romana?
deve ser uma releitura)
E quando calar o último grito
do fundo de um porão gelado
em um país qualquer da América?
Latina. Ou não.
E quando explodirem as últimas bombas?
Não será apenas uma releitura daquela primeira explosão?
Aquela que deu origem ao universo
E que se repete todos os dias
Na cólera convulsiva
Na voz de uma diva do jazz
No grito de um manifestante contra a guerra no Iraque
ou no Afeganistão
No gozo de um casal de amantes
Sejam eles hetero ou não.
Pouco importa.
Aquela explosão que deu origem ao primeiro instante
E que, dizem, se propaga infindamente,
dando origem ao universo
o qual, segundo consta,
ainda está em expansão desde bilhões de anos
e por bilhões de anos ainda mais.
Mas, atenham-se àquele primeiro instante!
O da explosão
Não será ele o mesmo instante em que o poeta escreve agora?
Quanto tempo dura um instante?
Os físicos não saberiam explicar
Qual a duração de um momento?
Eis uma grande questão sobre a qual se debatem filósofos
sem, no entanto, chegarem à conclusão alguma.
Eis a função do poeta.
Demonstrar a simultaneidade do tempo
Fazer ouvir o grito que já se calou,
Gritar a ferida que já se curou,
Trazer lá do fundo da alma
à zona mais clara do consciente
as maiores angústias ancestrais
E mostrar que ainda se sente o medo
que nos fez chorar na noite passada.
Aliás, que sempre se sentiu
E sempre se sentirá.
Pois tudo o que foi ainda será eternamente
Com diz a lei do eterno retorno
Mas não exatamente igual
Como uma releitura
Escrita por um poeta bêbado
Sentado no boteco mais degradado
Cercado de prostitutas,
Aliás, de uma nobreza de caráter invejável.
“Não é possível escrever poesia depois de Auschwitz” – dizia o filósofo
Pois é exatamente depois de Auschiwitz que a poesia se torna possível
E necessária
Para mostrar que auschiwitz nunca acabou e nunca acabará
Para não permitir que se esqueçam os gritos
E os gemidos.
Mas e as bombas?
E quanto às bombas,
Elas não acabarão de uma vez por todas com a humanidade?
De que vale escrever poesia então?
Isso não vai fazer diminuir o preço do pão.
Nos tornará mais livres talvez.
Ou não.
É importante lembrar que um dia existiu o amor,
Sim, existiu o amor,
Mas isso já faz muito tempo,
Foi na década de 60
Antes do vírus.
Mas ainda restam fragmentos desse amor,
em pedaços de guardanapos
e em grãos de areia escondidos sob as ruas de Paris.
E o que resta da vida senão a epígrafe?
O poema nada mais é que uma epígrafe então:
“Aqui jaz a humanidade,
Sucumbiu sobre o jugo de sua própria ganância,
Fruto de sua ignorância
E de sua inteligência,
Que é sua contraparte.
Padeceu sob a tirania de si mesma
Em que homens dominavam homens,
Dominavam mulheres
E maltratavam as crianças
Destruíram tudo o que o universo pôde criar de mais belo
Mataram suas divindades
Às quais deram vários nomes,
Mas que poderiam ter chamado somente de Natureza.
Venderam seu tempo, suas virtudes, sua dignidade,
Trocaram por um pedaço de papel
Que eles trocavam por mercadorias
Num lugar chamado mercado.
Criaram leis que restringiam sua liberdade,
coibiam os amores
e proibiam a felicidade.
Aqui jaz a humanidade.”
Eis a epígrafe,
Eis o poema.
No mesmo instante em que tudo se dissipa,
ele faz uma releitura
implacável
das ruínas ao seu redor.

Audrei Teixeira de Campos é escritora, historiadora e professora, membro da Associação Cultural Rastilho.
Seu blog pessoal é: http://olampejo.blogspot.com

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